editoria #01

Festa começa com fé

Já ouviu dizer que Deus é brasileiro? Acredita quem quer, mas a relação intensa da nossa cultura com a religião é fato. Em um país com tamanho de continente, não tem como existir um só caminho, uma só verdade. Temos muitas formas de crer. Também temos muitas formas de celebrar essas crenças. Se a fé é fortalecida nos dias ruins, também são as dificuldades do caminho que fazem a festa ser ainda mais fervorosa. Não festejamos porque a vida é sempre boa, mas porque mantemos viva a esperança de que será um dia.

Nesta edição do Trendices, vamos conhecer como a fé marca as maiores celebrações do calendário brasileiro.

Carta
do editor

Quando a Silva foi criada, a gente sabia que queria criar novos caminhos para o mercado da comunicação. É uma meta ambiciosa para quatro profissionais nascidos e criados em periferias do Rio de Janeiro. Desde então, nosso trabalho é construir um modelo de agência criativa mais ético enquanto criamos narrativas sobre o Brasil real. O que você está lendo agora também faz parte desse projeto.

Uma equipe multidisciplinar, com especialistas de diferentes regiões do país, se juntou para criar um material completo autoral e acessível. Como fonte de pesquisa, a gente trouxe um diferencial: nossas vivências. Na história do Brasil, a cultura popular foi tratada como menos importante e muitas vezes chegou a ser apagada. Por isso, uma das nossas fontes de pesquisa é gente. Gente que vive e faz a cultura do Brasil.

O objetivo principal com o “Trendices” não é só mapear tendências de comportamento. É também um incentivo para que mais profissionais da comunicação passem a conhecer melhor o Brasil com quem querem se comunicar. A gente espera que essa leitura inspire mais publicitários, comunicadores e criadores a se educarem sobre toda a potência da cultura brasileira. Você pode ser nosso cúmplice nessa missão de transformar a comunicação. Afinal, grandes ideias são aquelas que mudam o rumo das coisas. 

Alan Ferreiras, diretor criativo e sócio da SILVA

os mais velhos

Fé que faz a ciranda rodar

Formar a roda, marcar o passo e cantar cantigas. Criança pode, velho também. Parece brincadeira, mas não é. Ciranda é uma arte popular que canta e dança a cultura brasileira. Pernambuco é considerado berço da tradição. O estado também foi berço para a Rainha da Ciranda, nascida em 1944 na Ilha de Itamaracá. Maria Madalena Correia do Nascimento é cantora, compositora e cirandeira, mundialmente conhecida como Lia de Itamaracá.

Foto: Acervo Itaú Cultural

“A ciranda é uma confraternização. Todo mundo dá as mãos, na maior harmonia, na maior satisfação, na maior alegria. Caiu na roda, dança. A ciranda é uma força muito grande, eu me sinto muito feliz cantando”.

Lia de Itamaracá, em entrevista ao jornal Brasil de Fato (2020)

Foto: Júlio César NYC

Lia dança ciranda desde os 12 anos de idade. Foi a única de 22 irmãos a seguir carreira artística. As apresentações em praças e teatros foram conciliadas com o trabalho de merendeira numa escola pública na Ilha. Chegou a disputar os direitos autorais de seu próprio trabalho até em 2005 ser reconhecida com o título de Patrimônio Vivo da Cultura de Pernambuco por sua contribuição para o reconhecimento da ciranda no Brasil e no mundo.

Foto: Júlio César NYC

Quem compõe as canções com Lia é o próprio mar. Ela conta que desde menina escrevia suas letras com ajuda do vai e vem das ondas, que levavam sua inspiração e voltavam com a canção pronta. Todos esses elementos – o sol, o sal e os peixes – carregam símbolos da sua espiritualidade. Lia é filha orgulhosa de Iemanjá e presta homenagem para o orixá nas roupas, músicas e entrevistas que faz. Também leva consigo o catolicismo e os agradecimentos a Deus.

A história de Lia faz coro com outros tantos artistas que cantaram a fé da nação inteira. Nas vozes dos nossos mais velhos, as lições estão presentes em cada acorde: no canto de Mateus Aleluia, no coco de Dona Selma, no samba de Clementina. Mas para que os antigos passem seus conhecimentos adiante, precisamos de uma geração que os escute.

afetividade

O Círio, a maniçoba e o afeto a gosto

Foto: Agência Pará de Notícias

Maniva. Toucinho. Charque. Pimenta de cheiro.

Ingredientes que despertam afeto e fé dos paraenses. Quando combinados com alguns outros itens e um longo preparo, viram a tradicional maniçoba, prato servido como parte da tradição do Círio de Nazaré. Nada de fogão à gás. Até a principal comida do Círio exige um pouco de sacrifício. São sete dias de preparo em fogo baixo para tirar o veneno da folha de mandioca e garantir o sabor da tradição que alimenta mais de 50 mil turistas. Na hora em que a maniçoba vai pra mesa, a refeição ganha status sagrado. É momento de reunir famílias, romeiros, fiéis e ateus.

Para dar mais um gostinho dessa marca na identidade paraense, a cantora marajoara Naiemi nos leva para dar uma volta por suas memórias na maior festividade religiosa do Norte do país.

colcha de retalhos

Qual é a cara das festas brasileiras?

Nesta editoria, embarcamos em uma pesquisa visual de sete festividades, espalhadas por todo país, pelo olhar de fotógrafos de todo o Brasil.

Dia de Yemanjá

Sons do fundo do nosso quintal.
Ou de muitos outros quintais no mundo.

radinho

Juliana Silva nos leva com ela para a praia do Rio Vermelho, em Salvador. É dia 2 de fevereiro, dia da sua mãe Iemanjá.

Reteté também

é festa?

data silva

O reteté é uma forma de celebração ritual do Espírito Santo que acontece mais usualmente nas igrejas pentecostais das periferias brasileiras, comumente durante as vigílias de sábado e domingo, frequentadas por pessoas que se conhecem, formam redes de solidariedades e, muitas vezes, residem nos mesmos bairros.

Nessa editoria, buscamos dados para entender como um país cada vez mais evangélico festeja.

Lançamento em breve

brasil, país-latino

Um salve pra cultura: quem é celebrado nunca morre

A única certeza absoluta da vida é a morte. Ela sempre chega, independente de caminhos e circunstâncias. Cedo ou tarde.

Nós brasileiros temos muitas formas de lidar com o luto. Quase todas elas, influenciadas pela religião. Uns vestem preto, outros, branco. Uns compram flores enquanto outros acendem velas. Mas existem ainda costumes quase secretos que revelam outra face da nossa relação com a morte. Nesses costumes não existe nem choro, nem vela. Existe festa.

Foto: Tomas Bravo Reuters

Quando falamos de luto e festividade, a primeira parada é sempre o México. Uma das festas populares mais famosas do país é sem dúvida o Dia dos Mortos. Enquanto no Brasil, os vivos visitam os túmulos no Dia dos Finados, a tradição mexicana de origem indígena acredita que os mortos é que fazem a visita. As famílias montam altares com fotos, objetos cheios de significado para receber as almas.

Apesar da influência europeia e da força do cristianismo aqui, o Brasil também é latino. Nossas raízes fincadas nas culturas afro indígenas criaram as principais expressões culturais que formam a identidade brasileira. Entre essas expressões, o samba tem lugar garantido. É justamente através do gênero musical e de suas origens africanas que descobrimos outras formas de olhar para o desencanto.

Foto: Vinicius Xavier

Na tradicional e secular Festa da Boa Morte, na Bahia, a celebração não está no pólo oposto da morte. A cidade de Cachoeira faz um grande cortejo pelas ruas para celebrar a liberdade que só chega com o final da vida. Tem missa, procissão, distribuição de comida. E adivinha como termina? Em samba de roda!

Já no Rio de Janeiro, beber o morto é uma homenagem conhecida entre os sambistas como "gurufim". Nos enterros da comunidade do samba, brindar e beber os grandes bambas é uma maneira de não deixar o samba morrer. Onde a vida termina, começa o legado.

Apesar dos nossos olhares de curiosidade para a relação dos mexicanos com a morte, temos mais em comum do que imaginamos. A começar pela história. Todas as culturas da América Latina tiveram de se adaptar para sobreviver. Adaptar a forma de vida, o idioma e sobretudo a fé. Quando a religião virou arma de guerra, tivemos que criar novas estratégias de resistência. Nossos cultos e ritos, como são hoje, mostram a força de uma origem que escapou do esquecimento. E escapar do esquecimento é, de certa forma, fugir da morte. É encontrar vida eterna na cultura.